quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Poemas de diversos autores

(Silvia Nieva)

Onde nasce a dor não há um órgão,
as palavras é que o criam.
O grito surge na cabeça,
o coração dá-lhe o impulso,
a tremura propaga-o.
O grito precede o corpo
e a dor será somente uma imagem.
A poesia inventou-nos,
criou olhos para referir olhar,
um corpo que dá sentido a corpo,
e o homem para significar homem.
O real começa na palavra.
Um poema traduzido em grito, angústia, tristeza,
sua leitura fará a espera,
a solidão
se enchendo do tempo que as nomeia.
Os poemas farão o sono e a insónia,
encherão os corpos de abstracto, verdade, mentira.
Entretanto, eu,
que existo para dar sentido às palavras,
que sou só uma imagem do arbitrário do seu signo,
entendo hoje que elas foram primeiro
e declaro aqui que a poesia acontece
e que inventa os poetas.

***

(Al Berto)

UMA PAIXÃO

Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado


tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem

antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te.

***

(Roque Dalton)

Está a acabar Setembro, altura de dizer-te
quão difícil tem sido não morrer.

Esta tarde, por exemplo,
tenho nas mãos cinzentas
livros belos que não entendo,
não consigo cantar apesar de a chuva ter parado
e vem-me sem razão à lembrança
o primeiro cachorro que amei em criança.

Desde ontem, que te foste,
até na música há frio e humidade.

Quando eu morrer,
só me lembrarão a alegria matinal,
a bandeira sem direito a cansaço,
a concreta verdade partilhada à fogueira,
o punho unânime com o clamor da esperança.

Faz frio sem ti. Quando eu morrer,
quando eu morrer
dirão com boa intenção
que eu não soube chorar.
Chove de novo agora.
Nunca foi tão tarde como hoje
às sete menos um quarto

Apetece-me rir
ou então matar-me.

***

(Ulalume González de León)

1
Tão longe
o pássaro
voa
que entre ele e mim cabia qualquer fábula.

2
Há que escolher
entre ser a manhã
ou então escrevê-la.

3
Ó giesta amarela,
tão amarela,
tão,
que perdi o hábito.

4
Duma palavra a outra
a nuvem mudou com o vento
e uma mentira escrevi.

***

(Roberto Bolaño)

Eu tinha vinte anos então
e estava louco.
Tinha perdido um país
mas ganhara um sonho.
E se tinha esse sonho
o resto não importava.
Nem trabalhar nem rezar
nem estudar de madrugada
com os cães românticos ao pé.
E o sonho vivia no vazio do meu espírito.
Uma casa de madeira,
a meia luz,
num dos pulmões do trópico.
E às vezes virava-me dentro de mim
e visitava o sonho, estátua eternizada
em pensamentos líquidos,
uma bicha branca retorcendo-se
no amor.
Um amor desbocado.
Um sonho dentro de outro sonho.
E o pesadelo dizia-me: crescerás.
Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto
e esquecerás.
Mas nesse tempo crescer seria um crime.
Estou aqui, disse, com os cães românticos
e aqui me vou ficar.

***

(Eugenio Montejo)

Um dia escreverei com pedras,
medindo cada frase
por seu peso, volume, movimento.
Estou cansado de palavras.

Lápis não, andaimes, teodolitos,
a nudez solar do sentimento
tatuando no fundo das rochas
sua música secreta.

Com seixos escreverei
meu nome, a história de minha casa
e a memória daquele rio
que vai passando sempre e se demora,
sábio arquitecto, entre as minhas veias.

Com pedra viva escreverei meu canto
em arcos, pontes, colunas,
frente à solidão do horizonte,
como um mapa abrindo-se ante os olhos
dos viageiros que não regressam nunca.

***

(Pedro Salinas)

[Mi manera de estar solo]


À noite começam
a acender-se as perguntas.

Há-as distantes, serenas,
imensas, como astros:
perguntam dali
sempre
o mesmo:
como és?

Outras,
miúdas e fugazes,
pretenderiam saber de ti
coisas de nada, exactas:
a medida do teu calçado,
o nome da esquina do mundo
onde me esperarias.

Não podes vê-las, tu,
mas tens o sono
cercado todo
por interrogações
minhas.
E um dia, acaso,
tu dirás, sonhando,
que sim, que não, respostas
de acaso e milagre
a perguntas que ignoras,
que não vês, que não sabes.
Porque não sabes de nada...

e quando acordas,
elas escondem-se,
invisíveis se fazem,
e apagam-se.

E alegre seguirás
a tua vida, sem saber
que a meio dela te encontras
cercada de ânsia, de afã, de anelos,
perguntada continuamente
sobre aquilo que não vês
nem podes responder.

*** 

(Roger Wolfe)

Conheço os argumentos todos.
E todos os contra-argumentos.
E a futilidade da vida.
Conheço a fome, a sede, a ânsia.
A alegria.
O amor? Também.
O desamor. A dita e a desdita.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
Tropeço cada dia na mesma pedra.
No fim já nem sabemos
se há mesmo pedra ou se tropeçamos
por hábito, por amor à arte,
porque não somos capazes de outra coisa.
Porque o homem é um animal que tropeça.
Porque não somos capazes de outra coisa.

***

(Louise Glück)

[The floating library]

A luz mudou,
o dó está mais cavo agora.
E a canção da manhã retumba no espaço.

Eis a luz outonal, não a luz da primavera.
A luz de outono: Tu não serás poupado.
A canção mudou, penetrada
pelo indizível.

Eis a luz de outono, não a que diz:
Nasci de novo.
Não a aurora da primavera: Fiz força, sofri, fui parida.
Eis o presente, alegoria de desperdício.
Muito mudou, mas tu tens sorte:
o ideal arde em ti como febre.
Ou não como febre, mas como um segundo coração.

A canção mudou, mas é ainda uma beleza.
Confinada agora a um espaço mais pequeno,
o espaço da mente.
Um pouco triste, algo desolada, angustiosa.

Mas comparecem, as notas, rondam estranhamente,
antecipando o silêncio.
E o ouvido habitua-se a elas,
como os olhos se habituam à ausência.

Tu não serás poupado, nem será poupado o teu amor.
Um vento veio e se foi, desarticulando a mente
e deixando no seu rasto uma estranha lucidez.

Ó privilégio, este de viver com paixão
agarrado àquilo que se ama,
não ser destruído pela perda da esperança.

Maestro, doloroso:
Eis a luz de outono, derramada sobre nós.
Ó privilégio, acercar-se do fim
e crer ainda em alguma coisa.

***

(Juan Antonio González Iglesias)

[Un poema cada día]

Este é o meu corpo, onde
coincidem amor e linguagem.
A soma das linhas que escrevi
não esboçou meu rosto,
mas algo mais humilde, meu corpo.
Isto que tocas é meu corpo.
Como outro o disse melhor, isto
que tocas não é um livro, é um homem.
Sou eu, porque não há
uma sílaba que seja que esteja livre de amor,
não há uma só sílaba que não seja
um centímetro da minha pele.
No poema eu sou afagável
não menos que na noite, quando estendo
meu sonho a par do sonho que amo.
Não mosaico, nem número, nem soma.
Não apenas isso.
Isto é uma entrega. Sou pequeno
e grande nas tuas mãos.
Esta a minha salvação. Este sou eu.

Este rumor do mundo é o amor.

***

(Rúben Bonifaz Nuño)

[La cancion de la sirena]

Algo se me quebrou de manhã
por andar, de cara em cara, perguntando
por quem vive dentro.
E fala e queixa-se e torce-se-me
até a língua do sapato,
de ter que aguentar como os homens
tanta pobreza, tanto caminho
escuro para a velhice; tantos remendos,
nunca invisíveis, no coiro da alma.

Eu não entendo, eu amo apenas
e trabalho no meu ofício.
E penso, temos que viver; difícil
e tudo o mais, é nossa a nossa vida.
Mas quanta fúria melancólica
em certos dias. Quanto cansaço.

Como, então,
pensar em pratos venturosos,
em colheres sossegadas, em ratazanas
de luxuosíssimos apartamentos,
se recordamos que os pratos
uivam de saudade, boquiabertos,
e acordam secas as colheres,
e desfalecem de fome as ratazanas
em humildes cozinhas.

E não falo, que conste,
em símbolos; falo chãmente
de meras coisas do espírito.

Que insofríveis, por vezes, as virtudes
da boa memória; eu recordo-me
até a dormir, embora jure e grite
que não quero recordar.
Chego de andar à procura, mas ninguém,
que eu saiba, ficou à minha espera.
Não conheço ninguém, hoje, e escrevo apenas,
e penso nesta vida que não é bela
nem muito menos, como dizem
os que vivem afortunados. Eu não entendo.

Escrevo amargo e fácil,
em dia ofegante e monótono,
sem ter cabeça em cima do fato,
nem fato que não aperte,
nem mulher em que cair morto.

***

(Cesare Pavese)

[Cómo cantaba mayo]

Tu és como uma terra
que ninguém disse jamais.
Tu nada esperas
senão a palavra
que há-de brotar do fundo
como no ramo um fruto.
Um vento te alcança,
coisas secas e mortas
metem-se-te aos pés
e vão com o vento.
Membros, palavras antigas.
E tu estremeces no meio do Verão.

***

(Fermín Herrero)

Acordas de madrugada, ligas
o rádio, velando os teus mortos
voltas para a cozinha. Não há dia que se vá
sem derrota. Aguentas a pé quedo o frio
de um ardor que também perdeste. Começou
a nevar com força, antes assim,
para estas noites em branco. Quem te
lembrará, de que modo te sentirá a falta
para tomar alento? Talvez, certa madrugada,
alguém se apoie na primeira cicatriz
da tua memória.

***

(Alberto Vega)

Deus morreu, Marx também
(e até eu ultimamente não me sinto
nada bem)

O caso é que me busco entre as coisas
próximas, entre tanto
vinho bastardo e tertúlias de província,
trocando as voltas a uma carta
marcada do baralho do destino
com orlas às cores e falsos paraísos,
o tempo desafiando entre mitos e flautas.

Quanto ao resto, tudo bem. Obrigado.

***

(Pedro A. González Moreno)

Quando estiver tudo escrito
e forem inúteis as palavras,
traço a traço, então, escreverei tua sombra
com sílabas de fumo
e ler-te-ei no escuro da noite.
Hei-de soletrar-te à luz de um verso
que alumiará tua casa;
tua casa, que de repente
ficou sem lembranças, como que detida
a meio de um abraço.

O ar estremece ainda
com o barulho de portas que se abrem,
tal como os móveis também estremeciam,
sem nós repararmos,
ao ver, cada tarde, que regressávamos do mundo.

Esses móveis que agora, à luz de um verso,
nos esperam ainda talvez
com a mesma impaciência com que os mortos esperam
que alguém feche a noite 
de seus olhos sem ninguém.

***

(Pedro A. González Moreno)

Que ninguém toque no mar, ninguém toque
a carne das ondas,
que é carne da minha carne. Ninguém
toque a pele sagrada da espuma
porque dela teço, sem pressa, meu sudário.

Põe-se o sal em pé tal como um homem
que me recebe
com seu abraço de algas: a amante
sou do mar, a que
nunca verá na areia o sol a pôr-se.

Que ninguém pise a água, flor de minha saliva,
metal do sonho verde dos náufragos.
Ninguém beba a transparência
porque de minha boca estará bebendo
o veneno escuro da sede.

Que ninguém toque no pão
salgado do meu corpo, que apenas será
o alimento da água.

Sou a amante do mar, a que jamais
confunde o amor com a carícia.

***

(Pablo Neruda)

Gosto quando te calas e ficas como ausente,
e ouves-me de muito longe e minha voz não te chega.
Como se os olhos te voassem e um beijo
por exemplo te fechasse a boca.

Como as coisas estão cheias da minh’alma
tu ergues-te das coisas, cheia da alma minha.
Borboleta de sonho, parecida com a minh’alma
e também com a palavra melancolia;

Gosto quando te calas e ficas como distante,
assim como a queixar-te, borboleta arrulhando.
E ouves-me de muito longe e minha voz não te alcança:
deixa-me só calar no meio do teu silêncio.

Deixa-me também falar com teu silêncio
claro como lâmpada, simples como anel.
Tu és como a noite, silente e estrelada,
teu silêncio de estrela, tão distante e singelo.

Gosto quando te calas e ficas como ausente,
distante e dolorosa como se estivesses morta.
Uma palavra, então, e um sorriso bastam,
e eu fico alegre, alegre por não ser verdade.

***

(Valeria Pariso)


Pouco a pouco fomos descobrindo
como se põe sal por cima do silêncio
e água por trás das palavras.

E preferimos calar para dizer a ausência.
E preferimos dizer para temperar a calma.

Mas o amor.
O amor cru.

E já não soubemos que fazer
com o deserto,
com os sinais,
com a sede.

***

(Teresa Calderón)

1.
Eu tinha visto seus olhos nos teus que não me olham e morrem por vê-la.


2.
Era uma falha definitiva. Num bolso de segredos um nome de mulher a tua letra um número a prova final na estrutura mítica do herói – consultar Villegas, Juan – no bolso essa mulher esse corpo dos teus delitos.

3.
Amanhã marcarei esse número. Repetindo a operação até dar com essa pombinha. Penso dizer-lhe menos coisas do que aquelas que penso. Mas a ti aviso-te havemos de encontrar-nos os três e seja o que for aqui te prometo vai haver um morto vais ter meu querido um morto na família.

4.
Como vês ou como não vês estou pendente de ti. Estou cheia de ti.

5.
Agucei o olfacto para farejá-la melhor nas tuas camisas no jardim do teu peito. Se visses a subtileza do meu ouvido colado às portas que espectáculo magnífico e o olho na fechadura como o náufrago em sua tábua e o mar todo só para ele.

6.
Os meus sentidos alerta podem reconhecer-te à distância de metros com uma névoa de cinema em pleno centro de Santiago ao meio-dia no meio da multidão. Todos os meus sentidos alerta. Digo, todos menos o sentido de humor.

7.
Cuidado comigo, maldito, porque te amo.

8.
É melhor acautelares-te. Sabes uma queda no banho essas são quedas fatais entendes-me um remédio a mais ou por engano estás a ver um acidente doméstico quem quer tem estás a arranjar uma tomada eléctrica e oh, surpresa, Fiat Lux! compreendes ou a faca de cozinha arrumada dentro da cama ou então o gás lento mas seguro como sabes. Por isso cuidado que te encontre confessado oleado e sacramentado caso eu te descubra amantíssimo herói.

9.
Afago-te arranho-te com táctica felina porque me estás a mentir porque sei tudo eu te juro embora não digas nem pio.

10.
Levaria a noite toda a contar os espantos que te daria caso se confirmassem as minhas – na tua miserável opinião – infundadas suspeitas. Não fazes ideia dos horrores de que sou capaz, vida minha, as mezinhas sem conta que arranjaria na cozinha até acertar na poção para te pôr fora de combate.

11.
Nesta guerra sangrenta a matemática está do teu lado, porque eu sou uma e uma é nenhuma. Perante isso, eu deveria talvez depor as armas e despedir-me com os melhores votos, sede muito felizes, um raio que vos parta. Oxalá vos visite a cegonha periodicamente carregada de feitiços, que não faltem no himeneu as rainhas da morte, as parcas das infalíveis tesouras. Oh, Mnémesis, deusa fantástica da vingança!

***

(Jorge Riechman)

Leito Vazio 

1. 
Falo de um tempo de raiva
em que todos os rostos se fizeram pedra
polida impenetrável, com corvos ávidos de fogo
a fustigarem o sol.

Busquei-te detrás de todas as portas condenadas,
em lixeiras, em barrancos secos, em matadouros fechados,
em estações vazias. Tinha perdido
a força da memória e do futuro.
Buscava-te com paus aguçados, com dentes
e costelas de cadáveres, com raiva e
com exaltação e ferrugem.
Falo de um tempo em que te havia perdido
e não restava nada...

2.
Desde que te perdi
perdi meu corpo.

Viajeiro de um tempo
sem dimensão.

Sozinho me trato com árvores invictas.

Amontoo
as manhãs ceifadas ao pé do teu leito
vazio.

***

(Chantal Maillar)

Andava pelas costas da tua mão, confiada,
como quem anda nos montes
seguro de que o vento existe,
de que a terra está firme,
da repetição eterna das coisas.
Mas de repente o universo tremeu:
levaste a mão aos lábios
e bocejando abriste a noite
como uma gruta cálida.

Levavas dez mil séculos despertando
e o fogo ardia impaciente na tua boca.

***

(Juan Gelman)

não é para ficar em casa que fazemos uma casa
não é para ficar no amor que amamos
e não morremos para morrer
temos sede e
paciências de animal.

***