quinta-feira, 31 de março de 2016

31.03.2016

São oito e vinte e dois de uma manhã clara demais para a morte. O céu azul como a íris de um cachorro. A navalha de Buñuel ostentando a intuição de um futuro sangrento, brilhando contra o sol, brilhando contra meus ossos escuros, são oito e vinte e dois de uma manhã de natureza invasora, como a língua acidentada em minha boca, todas as falas escorrem como líquidos cujo corpo protetivo fora arrebentado. É manhã de chutar um corpo morto, por hábito, por crueldade, por desespero, porque a navalha brilhou contra a vontade de salvar esse corpo acidentado, essas falas escorridas, essa língua intuitiva, são oito e vinte e dois de uma manhã aberta com uma navalha, meu coração azul como o olho de um cachorro morto, são oito e vinte e dois e nunca é o próximo segundo.

31.03.2016

Sonhei com a nitidez dos pássaros suicidas, suas asas carregadas de escuridão eram pontes para uma noite sem fim. Sonhei com suas gargantas mal-humoradas contra todo amanhecer, essas pequenas passagens linguísticas eram TODAS as portas abertas para a claustrofobia. Destranca esse peito suicida com a nitidez de um poema que voa no escuro, contra todas as portas, a noite é um pássaro suicida que voa.

31.03.2016

Respiramos em cima dos propósitos toda a umidade das palavras. Carrego pedaços de uma alucinação partida, o pássaro voa com seu mínimo esqueleto contra a distância obscena do céu. Se eu pudesse voar, eu ficaria. Se eu pudesse voar, eu respiraria a umidade de todas as palavras.

31.03.2016

Todo corpo é a resistência de uma imagem.

31.03.2016

A noite é longa e cheira a animal aberto.

terça-feira, 29 de março de 2016

Verde contra o universo, dentro de mim as coisas cresceram inúteis - os nervos se apertaram contra os sonhos - dentro de mim as palavras não sabiam a hora de dizer amém, a noite tateava o rosto de deus como um cego tateia o rosto de quem lhe diga um oi, um tímido oi, uma pequena abertura contra todas as planícies falsamente abertas, nem por isso era mais fácil dizer, nem por isso as palavras relaxavam, a palavra era sempre um pedido de socorro contra tudo que cresce inútil

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Eu abro todos os sonhos como ostras arrancadas do mar, há muito tempo eles encharcam a pele de sal e ardem suas mínimas feridas, há algum tempo o mar mostrou-se um esconderijo instável, eu queria abrir a boca como os sonhos, porque ela foi arrancada da nascente das palavras, e toda fissura arde como um poema salgado, instável, mínimo.

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A morte tem mãos delicadas, boca silenciosa, caminha lenta, com preguiça. Não gosta da eletricidade das palavras, disfarces para caminhos longos, ela é um afastamento - como um campo ceifado que se abre para a distância, abre os olhos, o corpo - seu espanto é líquido, a morte tem um coração delicado.

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O delírio do poema demanda a vulnerabilidade do corpo

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As palavras crescem como plantas pacientes - seus talos e raízes abrem violentamente nossas bocas - sentimos o gosto da terra com incerteza e mágoa - na garganta a grosseria do outono - todo silêncio é uma estação.

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Acidentar todas as mãos por cima dos poemas - derrubar gestos 
como se estivessem encharcados de erros; buscar o machucado da palavra com a ponta dos dedos - atrás de um silêncio há um outro - ele cheira à alfazema - ele diz que o corpo é um gesto derrubado, o machucado de uma palavra, um acidente poético.


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Imagino deus entediado. Imagino-o acima do peso. Imagino-o no meio de seu ataque cardíaco: toda espécie de flores caindo de suas mãos. Imagino um animal de pupila dilatada - jogando fora poemas. Imagino-o na luminosidade de uma veia rompida: o mundo está aberto - fatiado - como uma ferida entre as pernas de uma mulher - imagino-a sangrando - um animal entediado no alto de sua isquemia.

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Alimentar com delicadeza os animais assustados - alimentar com a delicadeza os animais assustados - alimentar-se da delicadeza dos animais assustados.


terça-feira, 15 de março de 2016

16.03.2016

há sempre algo sobre úteros inchados
eles estão próximos da ferida disfarçada

há sempre algo sobre o pé da mulher que morre
as reticências se alojam nos calcanhares

um jardim de despedidas
flores assépticas
não foi plantada aqui a tua
esperança

até o inferno tem sua sala de espera
com música ambiente e revistas do ano passado

pensemos no viúvo que chora sob o pé da mulher
pensemos na boca como uma fala obsoleta

há sempre uma árvore se sentindo confusa
salgueiros melancólicos frutos plásticos
aqui foi plantada uma voz laminada - flor
de morrer na sala de espera - do inferno -
do teu calcanhar obsoleto.



16.03.2016

as palavras também envelhecem e morrem
às vezes sofrem acidentes
às vezes são luas passando frio
os planetas dormem porque o silêncio é infinito
há imagens que fedem como uma estrela queimada
morrer também é uma promessa

a raiz da planta conhece a própria cova.
cresce assombrada

pranto de acordar as plantas
pranto de desencontrar planetas
pranto de ter nas mãos a queimadura da estrela

às vezes as palavras respiram
pneumáticas
às vezes elas tem medo do escuro do universo
há imagens que cheiram à canibalismo
às vezes as palavras são cristais
bulímicos

pranto de distender madrugada.

15.03.2016

Não grite pânico perto das flores,
elas ainda estão crescendo.
Veja quantas cores são vivas e indiferentes
ao teu parir de poemas, porque toda melancolia
dissipa os enigmas como quem prorroga.
Fale bem baixo condizendo com a tua
face de mulher assombrada pelos olhos
estáticos dos animais que respiram mal,
daqueles cujos pulmões abrem fendas
de luz em cima das palavras - o sol também
pode ser imitado, ele pode até fazer calor
à noite. Não grite pânico perto dos poemas
eles podem perceber a sua natureza maligna
e a melancolia então derrubará planetas inteiros
só com essa respiração de quem abre fenda,
de quem olha estático, de quem faz réstia,
de quem cresce sem pausa ou motivo.

15.03.2016

A patologia toma um café depois do almoço
enquanto tu asfixia e todas as cores são lâminas. 
Precisamos falar sobre aquilo que gruda na carne
e que é imitação de carne e que também é luz
raio estrela e luar. Isso não é um poema irônico sobre
a famosa depressão. Isso é um bocejo azulado
faminto histérico impedido de ser outra coisa que não
um sono imenso, gigante, um sono arrependido
de ter acordado um dia e percebido a distância 
obscena entre viver e desistir.

15.03.2016

Há quem diga que as manhãs
são figuras mitológicas distantes,
abafando, com suas asas douradas,
os sonhos,

Há quem pense no sol como um
catalisador de esquizofrenias.

A cidade também se põe de pé
porque a luz constrange e
clarifica as feridas.

Não temos tempo já que chove
paciência, a eternidade tem os
olhos da morte.

Deve ser mesmo assustador perceber
quando noite, a nudez do corpo
porque é escuro e podemos.

segunda-feira, 14 de março de 2016

14.03.2016

Mágoa de não queimar como
a floresta dos meus poemas,
de não saber dizer com o músculo
da língua a nervura do delírio.

14.03.2016

... esperamos pela notícia que dissolverá 
a luz hospitalar dos dias.

o lado de fora do hospício está
tão invadido pela escuridão dos quartos 
acolchoados, pelo nervosismo das camisas 
de força, e não sabemos das portas 
ou janelas ou pinturas, a realidade.

Buscamos nesses desenhos a nascente do
delírio como se nele houvesse um sonho -
chove neste mesmo lado de fora, há frio
e umidade nas bordas de toda imagem.

domingo, 13 de março de 2016

13.03.2016

A palavra que dorme no chão do abismo
não cabe em nenhuma boca, enquanto 
pensamos ter dito tudo e o pé torcido
lembra a curva da solidão, irreversível.

Olho de medir a distância entre ficar
ou pular, olho de medir a curvatura
da dor, olho de medir o tamanho da palavra
que dorme tão tranquila lá embaixo.

Não cabe em nenhuma boca essa distância, 
não cabe no corpo todo o sono dessa palavra. 

13.03.2016

Desenhávamos janelas pelas paredes
e o sol aparecia, ou era o calor de
sonhar.

Guardávamos na gaveta as navalhas
e todos os relógios da casa,
fingíamos estar molhando os pés
em todos os delírios, e o vento
aparecia, ou era alguém soprando
palavras, poemas, a areia do
deserto.

Mentíamos tão bem o silêncio
doméstico, enquanto os animais bebiam
água como só os desesperados bebem,
costurávamos tão agressivamente as
fissuras na carne, perdíamos todos
os pontos de junção, de união, de
depositar a palavra em outra
boca.

Continuamos, crescendo o barulho
dos relógios, afundando os cortes
das navalhas, mentindo mais
desesperadamente, guardando as
fissuras nas gavetas, soprando todas as
palavras, mergulhando os pés no
deserto.
Sonhando.

13.03.2016

Não há prévia imagem que aponte
a natureza de abuso da linguagem.
Não há chance de recusa, como as
crianças fartas do meio dia.

Respiramos o poema úmido
cheio de ataduras igualmente úmidas,
vermelhas como a pancada
da intuição que não se alcança.

A terra está repleta de raízes
delirantes, as plantas no entanto,
tão distantes, e nós mais ainda,
percebemos a ferida apenas como
cor e não podemos respirar os cortes
sem violarmos o próprio corpo.

13.03.2016

E o coração guardando uma palavra como um boneco de vudu lingüístico. Há quem reze pedindo desculpas, há quem esconda a escuridão da palavra dentro da medula do fêmur esquerdo. Somos organismos em curto circuito, nossas bocas dizem: amor luz morte silencio - mas não entendemos tantos discursos tomados por alfinetes, somos seres humanos e dizemos adeus.

13.03.2016

Tão cansada que os pulsos se afogam aquáticos - o suicídio tem a temperatura do banho no inverno - tão cansada que abraçaria emily durante seu exorcismo - as xamãs respiram palavras boca a boca suas línguas umedecem a raíz de todo homem - tão cansada que o sonho levanta suas paredes em retinas dilatadas e eu mergulho no flash de uma fotografia queimada - suas bordas ainda em chamas iluminam os rostos dos homens acidentados - a água vai embora pelo ralo e eu digo: se puder parta, antes de morrer quero dizer que parti.

13.03.2016

Estamos na ante-sala do silêncio: sua porta foi eternamente trancada e uma vela acende seus medos perto de uma janela. Cobrimos os moveis com o pêlo morto de nosso corpo e a este ambiente chamamos de lar. O sono está sempre faminto de palavras: o estômago transborda o sangue dos pesadelos. Houve um tempo em que toda promessa tinha esse mesmo silêncio amarrado ao calcanhar, um tempo onde abríamos as carnes com a delicadeza dos dedos aborígenes. A fome era um signo de luz. Agora a noite reflete mais lâmina que lua e os poemas enfileram-se em quarentena. Dormimos em noites artificialmente distendidas.

terça-feira, 8 de março de 2016

08.03.2016

Talvez meu braço não alcance agora
a janela do teu apartamento
e talvez seja impossível
desligar a lampada insistente
da noite.

Ficamos num quarto iluminado demais
para o suicídio.

Talvez eu precisasse trazer a cidade
para meus pulmões e carregá-la
como promessas ou apenas como
futuro, fogo, poema, discórdia.

Talvez eu estivesse indiferente
à temperatura do banho e talvez
a pele fosse um segredo violado
oco no coração, talvez eu tenha

ficado num quarto iluminado demais
para o suicídio.

segunda-feira, 7 de março de 2016

08.03.2016

tirem esses nós das minhas costas. eu preciso pintar o silencio na pele. eu preciso que a palavra encontre o osso, e se enrole na vértebra como a cobra peçonhenta que é, não pode haver distancia, veja bem, as minhas próprias mãos são tão distantes não posso nem me tocar até me entender, e do que serve tanto espaço se eu não posso sair daqui. veja bem, eu espero mesmo é que o veneno da palavra me faça dormir, e se puderem devolver a porcaria do meu urso de pelúcia, me pouparia um terço dos pesadelos. ou não, talvez não, porque eu não tenho mais sete anos. 

07.03.2016

engana-se com a luz dos meus pulmões à noite
eu sofro.

sobre a partida, eu espero até que a luz suavize
ou que os pássaros cantem mais baixo
talvez o poema também possa cantar mais
suave e baixo e morno e talvez ele seja
um pouco menos violento quando eu partir.

07.03.2016

a solidão é estar tão distante de todos os motivos.

os animais correm assustados ou apenas correm e eu estou despida de todos os entendimentos,

eu tenho os dedos sujos com a tua imagem.

eu abro os olhos onde cresce a raiz da palavra e ela é plástica oca tão sentimental.

da vida eu não esperava mais que pentear meus cabelos na frente do espelho.

07.03.2016

dorme uma mulher cujo sonho
quebra-se quinze vezes à noite
porque tudo é lamina e grito
quando a hora se repete como
um rosto que não se lava da
memória.

dorme uma mulher cuja boca
é larga para os fantasmas das
palavras, porque tudo é poema
que não se diz no meio de um
grito ou de um corte ou de um
sangue que não se lava de uma
ferida.

07.03.2016

eu não quero ser a mulher psicótica andando tranquilamente pela casa em chamas. eu não quero ser a mulher com as mãos cheias da fuligem de um sonho. eu não quero cavar a noite como se procurasse alguém equivocadamente enterrado com os olhos abertos. eu não quero retalhar pulsos em busca de palavras que o corpo não pode dizer. se eu fosse um pássaro o céu seria uma partida. mas o céu é o vislumbre inútil de um caminho.

07.03.2016

de repente estamos triturando as palavras, de repente não distinguimos uma das outras, e de repente um gosto de pólvora na boca diz que já tomamos todos os tiros ainda que não saibamos mais distinguir os buracos dos lugares entupidos de sonhos, estamos colocando palavras nas minímas aberturas, rasgando pele como em partos relaxados, desumanos, contrações sequenciais e ritmadas no coração se quiser morrer. 

se fossemos pássaros o céu seria uma partida.

07.03.2016

bonecas de porcelana me irritam. com seus gélidos e quebráveis rostos em mãos pequenas e desastradas. bonecas de porcelana me irritam com seus corpos moles facilmente rasgáveis um tecido tão delicado cheio de tão boa intenção e as tripas da boneca sempre ameaçando se jogarem para fora desse corpo incerto. bonecas de porcelana me irritam com seus traços pintados de olhos que nunca se movem mas brilham como promessas pausadas num vídeo cassete antigo, e seus cabelos sem possibilidade de tranças feitas por mães afetivas que fazem gemada em noites de inverno, bonecas de porcelana não deixam que a gente as toque quando queremos pentear seus cabelos, e também se andamos com elas no colo porque as amamos é sempre sabendo que elas vão se quebrar no primeiro passo em falso no corredor após o quarto.

07.03.2016

penso na comunhão das vespas ao redor da luz
e imagino a dificuldade de escrever a palavra mãe
depois de engolir trigésimo quinto comprimido
penso na morte abrindo um caminho com as duas mãos
como quem rasga um tecido corpóreo muito delicado
e penso num único espinho ao redor da palavra mãe
irradiando fé pelo corpo inteiro como quem te perdoa
ter falhado tanto.

07.03.2016

há que se ter força nos braços para levantar 
todas as árvores de um poema
e os bichos emudecidos cantam em línguas
estrangeiras ao universo, e eu
estou confusa como uma estrela que ao invés de cair
explode.
há que se ter as pedras bem amarradas aos calcanhares
da palavra, para entender seu peso, e saber da morte
a paciência de ficar sozinho no fundo de um lago.